Filme, espécie de tragédia grega adaptada à realidade portuguesa. Assume-se como tomo de trilogia incompleta
O interesse pelos clássicos vem da sua paixão pelo teatro ou encontra realmente semelhanças com a sociedade portuguesa de hoje?
Não é na sociedade portuguesa, é no Mundo actual. Há muito tempo que descobri que nas tragédias gregas e no Homero estão os arquétipos não só das histórias como das personagens de sempre da nossa tradição ocidental. O único que inventou depois alguma coisa foi Shakespeare. Tudo o resto parte dos gregos. Ao partir desses arquétipos, tem-se uma segurança muito grande para estruturar uma narrativa e socorri-me dessa segurança até agora. A partir de agora, já não.
Neste caso, a base foi a Electra…
É um interesse particular, pessoal. É o equivalente nas meninas do complexo de Édipo nos meninos e é uma personagem que há imensos anos, desde que a descobri, me fascina. Um dos meus primeiros filmes "infantis", chamado "Filha da mãe", já era uma versão adolescente e incipiente da Electra. E toda esta trilogia que começa na "Noite escura" e à qual falta a posta do meio foi feita única e exclusivamente para chegar à Electra.
Então, este filme é, assumidamente, um final de ciclo...
É um final de ciclo, não só por ser um final de trilogia como por estar agarrado às tragédias gregas.
Então, e essa posta do meio?
A posta do meio é um bocado cara. A conspiração da Climetenestra para matar o Agamemnon é feita ao mesmo tempo que dura a guerra de Tróia. Essa posta do meio era um pouco ambiciosa, porque tinha a família grega e a família troiana e passava-se no crime organizado, o equivalente que encontrei actualmente para uma guerra de Tróia. E isso era um bocado caro de fazer. Se, eventualmente, os meus próximos filmes tiverem um grande êxito e houver condições para o fazer, não está de todo posto de parte.
Sente-se também que o seu cinema se está a afastar de uma certa urbanidade para chegar à província. Há algum movimento deliberado nesse sentido?
Essa perspectiva assim tão linear não sucedeu. Mas houve sempre uma razão não folclórica para escolher o meio ambiente onde se passavam as histórias. No "Noite escura", uma casa de alterne, que é um mundo de mentira e de representação, era o meio ideal para uma tragédia passar desapercebida. Este tem uma história tão anormal e tão violenta que está talhada para se passar num ambiente isolado e fechado.
No filme, quase só vemos as personagens, parece já não haver mais ninguém naquela aldeia.
Tentei meter gente, o problema é que não há. Só durante as férias de Verão. Fora isso, aquelas aldeias têm muito pouca gente. Praticamente todos os habitantes fixos da aldeia entram no filme.
Este é um retrato de um país que nós julgávamos já não existir ou queremos fazer de conta que não existe?
Isso é propositado. Mas também já era o "Noite escura". É o retrato de um país que, nas cidades, se julga que não existe. Que está escondido. Curiosamente, este ambiente rural de uma aldeia um bocado perdida é mais compreensível internacionalmente. A imagem da senhora com o lenço preto na cabeça não é só portuguesa, é também da Sicília, dos Balcãs.
Há ainda alguma esperança naquelas personagens?
Acho que as aldeias estão a morrer cada vez mais. Não acho que haja assim uma grande esperança. Os jovens, que são pouquíssimos, estão lá porque ainda não conseguiram sair.
Como é que descobriu aquela aldeia?
Vi centenas de aldeias. Tinha de encontrar uma que tivesse um café que servisse. É triste, mas muitas aldeias do interior já não têm café, porque não têm clientes. Acabei por ir parar a Trás-os- -Montes. Também queria uma aldeia onde se sentisse a diferença entre o que foi e o que é. E em muitas aldeias das Beiras, já não se consegue perceber como era.
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